31 de outubro de 2010

Blues #432

Olho pela janela do ônibus e vejo o Rio de Janeiro se agigantar.

Numa dessas travessias que faço dia após dia, estalou uma das primeiras coisas que aprendi na língua turca de Eren Baytar, a pergunta que rabisquei num canto de papel sob a promessa de ruminá-la expiatoriamente mais tarde: neredesin?, ou seja, onde está você? A recordação desta frase foi a cérise sur le gâteau de algumas horas muito mal digeridas na Guanabara. Durante muito tempo, teimavam em ressurgir outras perguntas que, na falta dos braços finos que me acostumaram tão mal, acabei fazendo a mim mesmo: o que você fez da sua vida?

Eu sabia que não conseguiria me livrar tão cedo daquele mal-estar, que acreditei ser capaz de diluir numa mistura de sorvete de abacaxi e fanta uva (uma delícia, foi meu pai quem me ensinou). Por isso me enfiei no meu ônibus preferido e desci em Ipanema -- não, não estou tendo um daqueles delírios zona-sulescos que tanto nos incomodavam, mas é bem verdade que Ipanema, que "era só felicidade", virou um band-aid para os meus humores.

Durante duas horas senti que ia esquecendo o seu cheiro de cabelo. Por outro lado, totalmente outro, achei que conseguiria descobrir o cheiro de um outro cabelo. À medida que vencia as esquinas, eu repetia para todo e qualquer copo de cerveja, toda e qualquer piscadela, todo silêncio, todo ônibus que voltava e todo rabo de saia, que você e você não eram a mesma pessoa. Vocês não são o mesmo tempo, não têm a mesma pele e seus dedos não levam as mesmas coisas à boca. Nós: meus tempos, eu, as cores das suas peles. Nós fazíamos o caminho inverso daquelas outras noites, quando as vi pela última vez.

Pontos de ônibus e eu

Como venho fazendo quando tenho noites tortas, parei alguns minutos naquele ponto de ônibus antes da esquina da Visconde de Pirajá com a rua Vinícius de Moraes.

Pensando rápido, consigo contar um punhado de pontos que fizeram parte da minha vida: Chueke, Mary Milk, Teatro Solar, Centro Comercial São Pedro, Oscar Vidal, antiga Olympia, Machado Sobrinho. Um na Paulista, um na Rebouças. Um na Pueyrredón, outro no Parque Rivadavia. Um em Porto Alegre, três em Niterói. Outro no Armazém 18. E esse de agora, perto da esquina.
Todo dia eu me largo em um banco de ônibus. O dia vai acabando e pela janela vejo o Rio de Janeiro crescer. Alguns cantos dessa cidade me trazem recuerdos, outros me chamam à descoberta: recordar e descobrir, tudo é feito em um silêncio quase sempre cansado, cheio de cicatrizes que teimo em expor ao sol e casquinhas de feridas que teimo em arrancar. Assim, meio espremido entre um passado que "era lindo, era triste, era bom" e um futuro que... que ainda não nasceu, trago rascunhados na pele os versos de um poema de Nâzım Hikmet chamado Son otobüs ("O último ônibus"):
Dünyayı telâşsız, rahat
seyredebiliyorum artık.
Agora posso olhar para o mundo
calmo e tranquilo.