25 de novembro de 2013

Not with a bang

Uma das coisas que mais me alegra é ouvir as histórias de infância da Letícia. Muitas delas nasceram de sua timidez crônica, o que sempre me faz transbordar de ternura e chamá-la de coisas como "minha bichinho do mato". Quando dermos cria, temo que venha a nascer uma mistura de gente com tatu bola. Assim como a Leticinha, nunca gostei de ser o centro das atenções. Ao final da defesa de minha dissertação, por exemplo, onde passei longas duas horas e meia na condição de réu, tratei de evitar a protocolar confraternização com a banca e fugi para um canto onde eu pudesse ligar para minha mãe. Como foi no meio daquela época escrota de pai na UTI, malas a serem feitas e coisa e tal, ninguém poderia reprovar tal escolha.

Daqui a alguns meses estarei de novo na situação de ser julgado pelo trabalho que venho desenvolvendo ao longo das semanas que passo na biblioteca. Às vezes, saio de lá com três páginas de material bruto, um negrume feito pela mão esquerda que vem borrando o papel de grafite, uma porqueira cheia de setas que normalmente demoro para entender na hora de passar a limpo. Outras vezes, saio de lá com meia página devidamente lapidada. Também já houve dia em que eu não aguentei ficar lá mais que uma hora.

Atualmente, o CCBB está abrigando a exposição da artista japonesa Yayoi Kusama. Até agora, não consegui ver mais do que as bolas infláveis que estão no pátio interno. Quando eu desço para tomar um mate, fico vendo a interação das pessoas com essas bolas. Como é proibido encostar, as pessoas fazem poses como se estivessem chutando, empurrando ou dando manchetes nas bolas. A foto, claro, vai para o Facebook ou para o Instagram.

Quando vejo essa cena, penso que talvez não seja preciso ir muito longe para encomendar uma bola inflável daquelas. Quero ver a exposição da Kusama para ver se perco a implicância. Tenho implicância com artistas japoneses por causa da Yoko Ono. Tenho implicância generalizada com o Japão por causa de animes e mangás e tudo que esse universo possibilita em termos de comportamento e hábitos de consumo. Comportamento e consumo que têm sido, cada vez mais, a mesma coisa.

Mas sempre que vou a São Paulo, gasto uma fortuna num supermercado japonês da Liberdade.

Semana passada eu estava lendo o conto "La parure", de Maupassant, na turma de Francês Intermediário 2. Uma aluna disse que os dramas desenvolvidos ali deviam ser coisas corriqueiras no século XIX. Achei justo. Propus, então, que a turma pensasse numa versão moderna do conto. Outra aluna disse que a história começaria com uma menina reclamando que o pai não lhe dava um iPhone. Também achei justo.

O mais escroto dessa rotina é que eu, que já não aguento mais essa coisa de escrever por obrigação – pois é, quanto mais o prazo final se aproxima, mais a coisa vira uma obrigação – já estou inventando um novo trabalho: traduções francesas do Cortázar. Estaria eu voltando ao Cortázar? Mas eu o larguei, por acaso? Às vezes eu me olho no espelho e digo para mim mesmo o que o Cortázar disse para o David Viñas: "seamos serios, che."

27 de agosto de 2013

Alice, cronópios, Amélie: post de aniversário

Eu gosto do encontro de Alice com a lagarta do cogumelo:
Alice looked all round her at the flowers and the blades of grass, but could not see anything that looked like the right thing to eat under the circumstances. There was a large mushroom near her, about the same height as herself, and when she had looked under it, and on both sides of it, and behind it, it occurred to her to look and see what was on the top of it. 
Acho particularmente genial como Lewis Carroll estende essa última frase quando poderia ter escrito apenas she looked all around it. Sigamos:
She stretched herself up on tiptoe, and peeped over the edge of the mushroom, and her eyes immediately met those of a large blue caterpillar, which was sitting with its arms folded, quietly smoking a long hookah, and taking not the least notice of her or of anything else. 
For some time they looked at each other in silence: at last the caterpillar took the hookah out of its mouth, and languidly addressed her. 
–Who are you?, said the caterpillar. 
This was not an encouraging opening for a conversation: Alice replied rather shyly, "I--I hardly know, sir, just at present--at least I know who I was when I got up this morning, but I think I must have been changed several times since that." 
–What do you mean by that?, said the caterpillar, explain yourself!
–I ca'n't explain myself, I'm afraid, sir, said Alice, because I'm not myself, you see.
–I don't see, said the caterpillar.
–I'm afraid I ca'n't put it more clearly, Alice replied very politely, for I ca'n't understand it myself, and really to be so many different sizes in one day is very confusing.
...e por aí vai. Em algum de seus textos, Cortázar retoma essa ideia de "ser várias pessoas em um mesmo dia". Não posso senão concordar, até porque tenho muito claro que eu não sou o mesmo que foi ao supermercado hoje de manhã, mas o que eu acho curioso é que o mesmo Cortázar instaurou um problemão quando criou os cronopios, as esperanzas e os famas. Quer dizer, não é Cortázar quem instaura este problema, mas sim o ser humano, com sua insuportável vaidade. Enfim. Acontece que ontem eu esbarrei n'O escorpião encalacrado do Arrigucci Jr. e reli o contículo chamado Un cronopio pequeñito, que ele cita para mostrar o tipo de presente de grego que Cortázar costuma deixar para seus leitores:
Un cronopio pequeñito buscaba la llave de la puerta de la calle en la mesa de luz, la mesa de luz en el dormitorio, el dormitorio en la casa, la casa en la calle. Aquí se detenía el cronopio, pues para salir a la calle precisaba la llave de la puerta.
Dizem que Cortázar é um autor boicotado no meio acadêmico argentino. Qué sé yo, nunca estudei lá, estudei foi no Brasil, e como lá se vai uma década lendo Cortázar a fundo, já me cansei de ver que as pretensões de seriedade de nosso fuleco meio acadêmico vão por água abaixo quando lemos as Historias de cronopios y de famas. Ou apenas Historias de cronopios, porque os famas e as esperanzas quase nunca são mencionados em nossas aulas. Então estariam certos os argentinos? Fato: todo mundo se identifica com os cronópios, todo mundo quer ser cronópio, todo mundo acha que pode ser cronópio. Do mesmo modo que todo mundo se identifica e acha que pode ser a Amélie Poulain. Cara, eu já enfiei a mão num pote de feijão. A cena clássica da Amélie enfiando a mão no saco de lentilhas não veio acompanhada de sua continuação: a mão cheia daquela poeirinha chata. Se Jeunet tivesse mostrado Amélie limpando a poeira da mão, eu teria me lembrado.

Dizem que virginianos tendem a ser organizados. Em nossas conversas de virginianos nascidos na mesma semana, Letícia e eu entendemos que o ser virginiano se caracteriza mais por um desejo de organização do que por uma organização efetiva: é só ver minha mesa de trabalho ou meus planos de aula. Mas o pior está em minhas gavetas, na gaveta de meias da Letícia, em nossa gaveta de utensílios de cozinha. Se tem algo que virginiano adora, é um monte de gavetas para sair enfiando seus objetos.

31 de maio de 2013

Numa tarde de Corpus Christi

Le peintre solitaire dans l'après-midi de la Fête-Dieu
Além de pintar, o que fazia esse homem solitário numa tarde de Corpus Christi?

O dicionário Le Robert diz de solitaire: "que vive, que faz algo na solidão e se contenta com isso", ao que se segue o exemplo "solitários contemplativos", extraído de uma citação de Rousseau sobre homens cujo silêncio só poderia ser quebrado pelos sons da natureza.

O pintor de parede solitário da tarde de Corpus Christi trabalhava pendurado num prédio da avenida Mem de Sá. Se desse as costas para a parede, ele poderia ver a Lapa, alguma nesga do Pão de Açúcar, Niterói e a boca da Guanabara. 

No que pensava o pintor?, o que contemplava diante da sua parede de cor difícil? Certamente, nada que tivesse a ver com a natureza de Rousseau. Estaria ele pensando na próxima refeição?, nas imperfeições da pintura?, na vida que seguia do outro lado da parede?, no jogo do Flamengo?, em descer dali (ainda que, para descer, fosse antes necessário subir)?

Em meio às minhas obviedades, penso no tédio do poinçonneur de Gainsbourg, que passava seu tempo furando os bilhetes dos passageiros em uma estação terminal do metrô parisiense. Outra das minhas obviedades: pensar no metrô d'après Cortázar in "El perseguidor": "viajar no metrô é como estar metido em um relógio."

Id est: ontem, numa tarde abafada de Corpus Christi, entramos na estação Saens Peña. Entramos pelo outro lado – "outro" em relação ao lado em que eu sempre entrei –, o que causou uma pane na minha bússola biológica que eu só devo ter resolvido lá pela Cinelândia. Saímos no Largo do Machado alguns minutos mais tarde, a alguns quilômetros de distância, sob o mesmo calor sufocante (mas já sem a tal confusão mental). Por alguns momentos, deixamos de existir nessa realidade em que nascemos, comemos, somos educados e trabalhamos para existirmos aos saltos, entre uma estação e outra: as pessoas que entram e saem do vagão mudam o ambiente, viram a página daquela realidade saltada, inauguram um novo capítulo de pensamentos, coisas assim.

No que pensava aquele homem que trabalhava numa tarde de feriado? O poinçonneur des Lilas, o pintor de parede da Lapa and o pedreiro da nossa obra, todos trabalhando numa tarde de feriado.

E no que pensava o homem que olhava o pintor desde o alto do prédio?

20 de maio de 2013

Le questionnaire de Proust, version 2013

Ma vertu préférée : à vrai dire, les choses que j’ai à faire ne sont pas de vertus.
La qualité que je préfère chez un homme : la souplesse.
La qualité que je préfère chez une femme : la souplesse.
Ce que j’apprécie le plus chez mes amis : ils ne valent pas un clou.
Mon principal défaut : je me déconcentre vachement trop.
Mon occupation préférée : frotter les pieds de Lætitia.
Mon rêve de bonheur : frotter les pieds de Lætitia au gré de mes désirs.
Quel serait mon plus grand malheur ? Si Lætitia m’empêchait de lui frotter les pieds.
Ce que je voudrais être : celui qui ne se déconcentre pas trop.
Le pays où je désirerais vivre : ici ça va.
La couleur que je préfère : vert.
La fleur que j’aime : je ne sais pas, mais j’aime le romarin.
L’oiseau que je préfère : je ne sais pas, mais j’aime les raies.
Mes auteurs favoris en prose : Julio Cor, Albert Ca.
Mes poètes préférés : Charles Bau, Carlos Dru.
Mes héros dans la fiction : Macunaíma c'est déjà lourd comme héros.
Mes héroïnes favorites dans la fiction : La Maga c'est déjà lourd comme héroïne.
Mes compositeurs préférés : P. da Viola, F. de Hollanda.
Mes peintres favoris : H. Matisse et J. Miró.
Mes héros dans la vie réelle : je vous le raconterai quand je les aurai choisis.
Mes héroïnes dans l’histoire : je vous le raconterai quand je les aurai choisies.
Mes noms favoris : Teresa avec un S, même si Lætitia ne l’aime pas.
Ce que je déteste par-dessus tout : les fourmis.
Personnages historiques que je méprise le plus : les gens à droite en général.
Le fait militaire que j’admire le plus : la traversée du Rubicon. Je l’ai vu à la télé.
La réforme que j’estime le plus : la réforme morale des gens gonflants.
Le don de la nature que je voudrais avoir : le tsunami.
Comment j’aimerais mourir : je n’aime pas l’idée de mourir.
État d’esprit actuel : j’ai chaud. J’ai toujours chaud.
Fautes qui m’inspirent le plus d’indulgence : ce sont les gens qui méritent l’indulgence.
Ma devise : évitez le téléphone.

13 de maio de 2013

Eu vou correndo

Próxima estação: Largo do Machado. Estação de integração para Laranjeiras, Cosme Velho e Cristo Redentor. Após dois anos, essa frase deixará de significar que ainda faltam alguns longos minutos até eu poder dizer home sour home. Quer dizer, após dois anos ganhando mofo em ponto de ônibus e jogando dinheiro de aluguel descarga abaixo, vou dar adeus a Laranjeiras. Adeus, Laranjeiras... ou hasta luego? J'sais pas. Nas nossas andanças de sábado, a Letícia dizia que gostava de tal ou tal prédio; eu embarcava dizendo que a gente moraria aqui ou ali. Prédios do Cosme Velho: bonitos, embora eu nunca tenha visto nenhuma alma viva entrar nem sair deles.

Vou sentir falta do bolinho de bacalhau da feira e das crianças comediantes da creche. Não vou sentir falta da gentinha do prédio ao lado nem da chuva atravessando a esquadria, pingando pelo peitoril e estufando o piso. Não vou sentir falta de deixar rios de dinheiro na lavanderia e na conta da proprietária deste apartamento. Eu queria muito mandar a Berenice tomar no cu. Eu só queria que ela soubesse o quanto eu penei para lidar com os problemas desse apartamento. Mil e duzentas dilmas: se foder, cara.

No meu segundo sábado em Laranjeiras, eu disse para minha amiga Luciana que havia vindo para cá para "escrever tese". A verdade é que eu produzi muito pouco nesses dois anos. Pouco, mas o suficiente para entender que fazer doutorado (corolários: burocracia, incompetência alheia e desmandos num ambiente que deveria suar espírito libertário) é só para quem tem estômago. Ô pai, ô mãe, que criação foi essa que vocês me deram e que me fez cultivar tantas ilusões?

Esse desaforo cotidiano que chamamos de vida.

Já faz três meses que desativei minha conta no Facebook. Tirando meus amigos de verdade, aqueles para quem eu puxo cadeira no boteco, nego estava muito chato. Nego estava falando demais. Histrionismo demais, Spice Girls demais, instagramização demais, iShit demais. Trabalhando 60% do tempo em casa, eu padecia do mal de ver qualquer intervalo de dez minutos se transformar em uma ou duas horas jogadas fora naquela droga. Eu perdia um baita tempo me irritando com o ser humano. Embora esse processo de desintoxicação virtual esteja sendo menos produtivo do que o esperado –bem menos, aliás–, o fato é que eu voltei a sentir saudades dos meus amigos, desses para quem eu puxo cadeira.

Acontece que, agora, a vida pulsante não está mais nesses arredores. Eu vou correndo buscar a glória com minha Letícia, minha alegria.

Próxima estação: Afonso Pena.