2 de abril de 2010

Desempacotando minha xeroxteca

Há quatro meses, por causa da mudança de Juiz de Fora, comecei a encaixotar a minha biblioteca. Mas não é exatamente dela que vou falar; deixo isso para outro momento, talvez quando tropeçar de novo naquele texto tão legalzinho do Walter Benjamin que se chama - veja só como sou criativo - "Desempacotando minha biblioteca". Hoje preciso falar da minha xeroxteca, aquele monte de papel que muitas vezes ignora a legalidade e faz longa companhia a tantos estudantes universitários.

Ainda me pergunto onde é que eu meti a cabeça quando inventei de organizar minha xeroxteca em pastas de papel. Elas rasgam com facilidade, ainda mais quando são compradas em quantidade insuficiente: a culpa sempre é dos cálculos mal feitos, pois em termos de tralha a gente sempre tem mais do que imagina ter. Digo isso com alguma propriedade, pois desde que me entendo como gente convivo com um grande acúmulo de coisas de utilidade duvidosa - isso quando as coisas não são realmente inúteis. E já que comecei falando da minha mudança, não custa nada lembrar que naquele processo de empacotamento, poluí o vasto mundo com quatro sacos de lixo, cheios de entulho.

Tenho a impressão de que, sob condições normais (aquelas em que o dono da tralha é um sujeito minimamente comprometido com sua formação intelectual), a xeroxteca nasce como um depósito menor de saber. Os livros conseguem conservar bastante do seu ar de limpeza, sem contar o carnaval das suas lombadas coloridas; já os textos xerocados, depois de manuseados pelo calor da sapiência (não se esqueça de que falamos de estudantes responsáveis) ficam encardidos, amassados, completamente rendidos pela pressa das anotações. Em sua informalidade monocromática, o texto xerocado raramente é protegido pelo fetiche.

Minha última experiência com um texto xerocado me mostrou uma coisa bastante engraçadinha. Em um texto de mais cem páginas (ou cinquenta e tantas folhas), encontrei intervalos de cinco, seis, até dez páginas sem um grifozinho sequer. De repente, com um simpes virar de folha, aparecia uma selva de rabiscos, coisas que eu não conseguia mais entender, interrogações, exclamações, críticas sem nenhum fundamento ao Jacques Derrida, links para outros textos que eu digeria na mesma época. Depois de passar or olhos pela terceira vez no Mal de Arquivo, três anos depois da primeira, consegui perceber com muito menos dificuldade o que a tradutora fez com o texto. Não por causa da familiaridade com o próprio texto, muito menos por causa de um grau menor de antipatia com o Derrida, mas justamente pelas minhas anotações, muitas das quais acabei tachando. Nessa falta de pudor ao rabiscar o xerox, a maturidade da leitura foi realmente visível.

O texto xerocado tem essa preciosa vantagem em relação ao livro. Rabiscar livros é algo que muitos, eu inclusive, fazemos com cuidado. Quase precisamos vestir luvas cirúrgicas para grifar um livro, mesmo quando o rabisco é fruto daquele "calor da sapiência" de que falávamos. Há sempre uma pausa entre ler, num livro, um trecho como "Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo" e contornar, na margem estreita, um ponto de exclamação. E preenchê-lo. E torná-lo uma marca. Verbo to carve, em inglês. Essa pausa sempre dura uma eternidade, já que a tinta - ou o grafite, para os que preferimos escrever a lápis - toma fôlego para marcar a sua própria eternidade.

Nestes quatro meses, três dos quais pretensamente dedicados ao repouso intelectual depois de uma pesquisa de mestrado extremamente desgastante, fui desempacotando minha xeroxteca sem nenhuma responsabilidade. Tanto é que apenas na semana passada me dei conta de que não havia aberto os três pacotes que eu considerava como "os mais importantes". Já a biblioteca... desde o Natal ela está confortavelmente acondicionada na estante que troquei com a minha irmã, onde há espaço até para livros que não têm muita participação na minha vida, como uma biografia de Indira Gandhi, O francês sem mestre ou Introdução aos estudos culturais.

Metade da xeroxteca, que foi devidamente dividida segundo este mesmo critério de utilidade, frequenta as horríveis pastas de plástico amarelo-ovo que todo aluno de Humanas da UFJF conhece como a sola de seu pé - e que não rasgam tão facilmente. A outra metade ainda repousa nas cretinas pastas de papel, ignoradas num quarto da casa da frente - apresso-me a avisar que a casa da frente é um espaço do terreno que os Reis de Faria cultivaram para guardar tudo que precisa sair do alcance dos olhos. Se algo não pode nem deve entulhar a sala e os quartos, ele é entulhado em algum lugar da casa da frente. É quase um gueto.

À medida que ia abrindo os pacotes da mudança e separando a papelada, revi e relembrei os desenhos que eu fazia quando as aulas ficavam improdutivas, ou quando eu dava uma desligada em casa. Não que eu desenhe bem, mas minha mão esquerda também tinha os seus momentos de competência. Alguns desenhos são até bastante originais, como o intitulado L'homme frappe à la porte, que mostra uma figura humana com o punho levemente erguido, batendo na parede de um corredor comprido. Outro desenho, e esse é um dos mais legais, mostra um homem franzino, fumando com um pé encostado na parede e com um olhar meio desconfiado, por baixo da aba do chapéu. Com uma voz grave, ele diz uma frase que andava muito em voga nas nossas aulas de francês: bouge de là...

Enquanto alguém rabisca ao léu as margens de um texto xerocado, o texto vira um detalhe ignorado. Desenhar nas margens de um livro? Ato de coragem para poucos. Ao ser ressaltado o espaço em branco em volta daquilo que seria a razão de ser da fotocópia, é o próprio texto xerocado, visto enquanto coisa orgânica, quem guarda em si um espaço de liberdade que é, afinal, um espaço de resistência - não nos esqueçamos de que "Toda canção de liberdade vem do cárcere".

Juntando todos esses parágrafos, não posso deixar de lembrar um dos meus trechos favoritos, de um dos livros que mais me atiçaram a consciência - Muertos Incómodos, do Subcomandante Marcos e de Ignacio Taibo II, que li na má tradução brasileira - e que cito no original:
Onde quiera anduve y onde quiera encontré gente como nosotros los zapatistas, que sea gente que está jodida, que sea gente que es luchona, que sea gente que no se deja.