17 de março de 2022

Três mil e trinta e quatro dias depois

Saí de uma reunião on-line (quem ainda as aguenta?) e fui lavar a louça que nós três deixamos na pia pela manhã. Ouvi o primeiro episódio do novo podcast da Ana Roxo e da Tati Fadel – Diário possível, mas inventado. Um episódio muito bonito...

Fiquei pensando na palavra "espanto", dita várias vezes no episódio. O que ainda me causa espanto? "Não o espanto ruim", como dizia a Ana Roxo.

Passei alguns minutos revisitando meus últimos tempos e pensando no que ainda era capaz de me causar espanto. A aluna que, em uma aula, elaborou toda uma teoria de cinco minutos sobre a diferença entre autonomia e independência? A outra aluna que fez uma dissertação de cinco minutos sobre abandono paterno quando entendeu que o personagem do texto que líamos na sala não tinha um pai presente? A outra, que ao ver uma imagem de um menino desenhando o símbolo do masculino e de uma menina diante do símbolo do feminino unidos por um sinal de igual, fez uma dissertação sobre o papel dos homens na luta por igualdade de gênero quando percebeu que a menina da ilustração já estava com as mãos na cintura porque havia sido muito fácil para ela contribuir para a criação dessa igualdade?

Demorei até encontrar outra coisa, mais óbvia e mais próxima, mais simples e cotidiana, mas cujo efeito eu jamais havia chamado de "espanto".

O espanto que me move há seis anos e meio: minha filha descobrindo o mundo, descobrindo, dia após dia, que o mundo é mais largo que parece.

Penso, rapidamente, numa frase de José Martí que eu já soube dizer de cor:

Cree el aldeano vanidoso que el mundo entero es su aldea, y con tal que él quede de alcalde, o le mortifique al rival que le quitó la novia, o le crezcan en la alcancía los ahorros, ya da por bueno el orden universal, sin saber de los gigantes que llevan siete leguas en las botas y le pueden poner la bota encima, ni de la pelea de los cometas en el Cielo, que van por el aire dormidos engullendo mundos.

Minha filha, que com oito ou nove meses ficava de quatro no chão, irritadíssima porque não conseguia coordenar os movimentos dos braços e das pernas a fim de engatinhar.

Minha filha, que um dia aprendeu a fazer xixi no vaso, mas se cagava (e se mijava) toda, de pé, quando tentava controlar o esfíncter.

Minha filha, que, pouco antes de completar cinco anos, no primeiro ano da pandemia, vendo mãe e pai trabalharem o dia inteiro no computador, agoniada diante daquele monte de coisas escritas nas nossas telas e nos nossos livros, decidiu que precisava aprender a ler e aprendeu, praticamente sozinha, usando como palavras geradoras os nomes dos personagens de sua série de televisão preferida.

Minha filha, que, meses depois, puxou um livro que a mãe havia deixado em cima da mesa (Minha irmã, a serial killer) e começou a ler, deitada no sofá, com as pernas cruzadas.

Minha filha, que, no vídeo que recebi hoje cedo do diretor da escola pelo WhatsApp, estava nadando sem ajuda da professora de natação. Doze segundos com o rosto dentro da água, batendo os pés e rodando os braços em movimentos perfeitamente coordenados. Uma baita conquista para quem tem pânico de água no rosto.

Minha filha, uma menina que me parece tão grande quando está dormindo, mas tão pequena quando andamos na rua.

Dora, meu grande espanto.