24 de janeiro de 2011

Ah, assim não!

Hoje fui ao dentista. Após preencher a ficha, responder ao questionário sobre minha saúde e ouvir da secretária uma das frases mais bonitas dos últimos tempos ("sua anamnese só apontou quatro coisas"), fui exercer uma das minhas atividades preferidas: ler revistas de semanas passadas na recepção de consultórios.

Peguei a edição da revista Época de 27/12 e tomei conhecimento de um livreto de trinta páginas que tem feito sucesso na França. Depois de uma leve comparação do autor Stéphane Hessel com aquele senhor que, como cantávamos na Cinelândia na chuvosa tarde de 1 de outubro, é socialista / é coerente / Plínio Sampaio presidente, a colunista listou alguns motivos pelos quais deveríamos nos indignar no Brasil atual. Concordei com vários pontos e até me espantei com a boa-vontade da moça com as propostas de um socialista de noventa e três anos. Talvez o fato de ele ser francês alivie a responsabilidade dela.

Claro, o título do livreto de Stéphane Hessel é Indignez-vous ("Indigne-se") -- não custa nadica de nada lembrar que a sílaba tônica de indigne-se é -dig-, não o inexistente -gui-. Pois agora já não me lembro se foi Hessel ou a autora do texto que retomou Albert Camus; de qualquer forma, não achei essa lembrança nada "indiguina". Mas não é exatamente disso que quero falar.

Na noite deste último domingo vi o trailer de uma adaptação de Chapeuzinho Vermelho para o gênero "terror capitalista". O filme Red Riding Hood vai estrear nos Estados Roídos daqui a algumas semanas, e em breve se espalhará pelo mundo propagandeado como uma obra-prima do cinema de entretenimento -- meio vampirinhos-adolescentes-caucasianos style, sabe? Na minha inocência, eu pensava que ninguém no mundo seria capaz de erotizar ainda mais a protagonista da história depois daquela interpretação cansativa da defloração da pobre garotinha que sai de casa vestida de menarca. Acontece que o staff do filme parece estar disposto a fazer isso, e agora tenho tido muitas vontades de cuspir na cara de todos os sujeitos cujos nomes aparecerem nos créditos finais de Red Riding Hood.

Estou pensando em agendar uma conversa séria com o sujeito responsável por criar o título em  português para essa desgraça. Tão grande quanto minha raiva é o risco de vermos nas filas dos shoppings dezenas e dezenas de crianças prontas para devorar suas pipocas e guloseimas enquanto uma púbere branquela e sem-sal se deixa deitar num monte de feno. Bueno, fui dormir achando que teria que engolir só essa.

Pois agora há pouco ouvi uma versão de Mon oncle Célestin cantada por crianças e para crianças.

Esta canção, composta pelo Boris Vian e eternizada na voz da minha musa Magali Noël, entraria com facilidade numa lista de músicas safadas para corações românticos (sim, roubei o subtítulo do disco da Sílvia Machete). A letra narra a história de uma mocinha que se lembra das suas estripulias de infância: ela apertava as buzinas da loja de seu tio Célestin, acompanhava o encaixe das ferraduras dos cavalos da vizinhança e ia à quermesse para atirar nos patinhos de papelão e andar no trem-fantasma e no carrossel (aqui Magali canta um dos versos mais bonitos do mundo enquanto desce a escala: "et les manèges qui tournent, tournent, tournent tant").

Eis que irrompe a última estrofe -- não mais no pretérito imperfeito, mas no presente. Agora, ela atira uma pedrinha na janela do seu Pierrot e se embrenha com ele no meio do mato. Magali canta os versos abaixo com voz de Lolita (tradução minha, com o devido tom de pureza):

Là, i' m'embrasse - oh, que c'est bon!
Et i' m'enlace - ah, pas si fort!
I' me délasse, i' me concasse, i' me fricasse
Ah, pas comme ça!
J'suis sa bécasse - enlève ta main!
Et le temps passe - oh, grand sournois!
C'est mon Pierrot, j'suis sa Suzon
C'est ça qu'est bon... oh...


Ali ele me beija - oh, como é bom!
E ele me enlaça - ah, não tão forte!
Ele me relaxa, ele me esmaga, ele me esquenta
Ah, assim não!
Eu sou sua pombinha - tire a mão daí!
E o tempo passa - ah, mas que safado!
Ele é meu Pierrot, eu sou sua Suzon
Isso é muito bom... oh...

A letra termina com uma parte falada, num tom de brincadeira delicioso. A mocinha diz que tudo aquilo "é muito bom" e, como quem experimenta um cigarro, tosse e engasga. Numa prova de safadeza valendo 100 pontos, Magali Noël tiraria 102.

Acontece que durante a adaptação da letra de Vian para o público infantil, algum espertinho cortou a última estrofe. Digamos que, aos ouvidos de uma criança, o verso "I' me délasse, i' me concasse, i' me fricasse" não soaria exatamente como se fosse cantado por um tomate sendo fatiado e cozinhado por um chef de mãos delicadas...

Até aí tudo bem, prezemos pelos nossos filhos. Mas agora é uma canção sobre uma criança que gostava (apenas) de brincar com os amiguinhos do bairro. Além disso, não dá mais pra saber que se trata de uma menina, e as vozes da criançada contribuem para o clima angelical. Confesso que senti uma raiva incontrolável ao ouvir a destruição do verso "Le commis chantait... Santa Lucia!"). E o mais curioso é que aquele pretérito imperfeito perdeu toda (TODA!) a sua graça. Perde a malícia, perde a língua... tudo se perde na má ideia de Bolling.

BLIM-BLOM!!!
Lembrei-me da Terezinha do Chico Buarque!
Bolling e a turma de Red Hiding Hood deveriam ter lições com ele.

Pois agora vem o problema: de um lado, a adaptação de Chapeuzinho Vermelho para o gênero "terror capitalista" é fruto de um processo de esvaziamento linguístico, reconstrução da narrativa e supererotização -- tudo isso autorizado pela leitura psicanalítica e bancado pela indústria do espetáculo visual. Por outro lado, a adaptação de Mon oncle Célestin para o público infantil tem a sua malícia reduzida a migalhas ("réduire en miettes" é minha expressão francesa preferida) via esvaziamento linguístico, tolhimento narrativo e clientelismo barato para pais desavisados (a canção de Vian continua aí!).

Em comum, duas atitudes irresponsáveis e violentas: de um lado, o verdadeiro estupro da Chapeuzinho Vermelho, praticado em favor de uma necessidade de excitar o público que beira a humilhação de tão rasa, epidérmica e vendida. De outro, uma violência contra a letra primorosa de Vian, contra uma aula de interpretação por Magali Noël, que acerta em todas as notas e todos os floreios, e contra o par língua/linguagem.

Nessa mesma onda, juro que um dia vou me ocupar do caso dos Mamonas Assassinas: o que os autorizava a afirmar, em rede nacional, que a Maria voltou pra casa toda arregaçada e não podia nem sentar e que uma teta dela um negão arrancou e a outra que sobrou está doendo? Tudo me leva a acreditar que é o mesmo motivo que leva a censurar a MC Kátia quando ela afirma que dá o cu de cabeça para baixo.

Tudo isso em nome do lucro fácil.

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Em tempo: na mesma edição da revista Época, tem um texto do Joel Rufino com o qual concordei apesar de estar meio mal-escrito. E as quatro coisas que minha anamnese apontou foram caso de diabetes na família, dores nas articulações, alergia a poeira e nervosismo.