7 de junho de 2010

O teatro de sombras chinesas

Aviso: é a minha rotina, como sempre.

Saibam, os que ficam, que várias das minhas quintas-feiras costumam terminar numa fila de embarque, na rodoviária do Rio de Janeiro, alguns quilômetros antes de me deitar na cama fria. No meio dos passageiros estamos nós, meu sono e eu mesmo (e alguma esperança, adornada com um cocar de penas cor de abóbora). Às vezes enchemos o ônibus - meu sono, eu mesmo e os outros embarcantes, com seus sonos ou suas faltas de sono. Pouco mais de quarenta pessoas, cada um com suas esperanças, cada uma com seu cocar. Outras vezes não enchemos o carro, e nessas vezes somos poucos os que subimos a serra. Certeza, só tenho a de que pouco vejo e pouço ouço, pois prefiro anestesiar o sono ouvindo os Beatles, a Nara, a banda do Dave Matthews, os Mutantes com a Rita Lee e outras coisas que dependem do quão brasileiro estou. E uso o verbo estar porque aprendi que o sono tem lá o seu mistério de fechar e abrir o tempo:  nessas e outras viro um corpo largado na poltrona, à sorte do motorista.

Um monte de estados, assim ando desde que me entendi como gente grande.

Naquela quinta fazia frio no Rio de Janeiro e eu andava bastante tupiniquim. Apesar disso, os rapazes de Liverpool me levariam para casa, e meu patriotismo que s'en foutait. Eu tinha sono, e ali eu era apenas um boi, seguindo e seguindo. Um boi com sono, enfiado goela abaixo a goles de caldo de cana e pastel.

A tarde já havia caído feito um viaduto quando saímos da Guanabara. Mas o poente ainda ardia a vista quando me vi, escorado aos pés de algum senhor do século XIX, olhando o cruzamento e toda a gente que espera para cruzá-lo. Friday morning at nine o'clock she is far away, canta Paul McCartney. Como se olhassem através da portinhola da minha cela, as pessoas que preenchem meus dias guanabarinos dizem que você não deveria estar aqui...

Motoristas desembestados como este daí sempre me fazem lembrar aquela piadinha...

E me diz também o senhor da estátua: você deveria estar em casa, ou ao menos a caminho dela. Eu deveria estar em casa, eu já deveria estar em casa, despejando talentos culinários num macarrão de três ou quatro minutos, o tipo de coisa que sempre fazemos enquanto rimos das justificativas para a permanência de música de qualidade mediana na minha estante, de algumas idées reçues sobre literatura e de outras um pouco menos reçues sobre como poderia ser o amanhã: oprimidos, enterrai vossas desavenças!, despejai talentos imberbes, tentai salvar o estômago, porque o coração, este jogou a toalha quando cogitei o miojo para dali a três ou quatro horas que eu não podia evitar.

A Avenida Brasil não termina nunca.

...do cara que morreu dormindo...
...não ainda, não ainda.

Evoé!, São Cristóvão, compadre dos motoristas!, 'bença para o rapaz ali na frente! Mal entro na Dutra, começo a desejar o pastelzinho de Piraí e outro caldo de cana. Mas o motorista não quer fazer a parada de cinco minutos. Compressão e dilatação do tempo: volto a dormir e me pego ainda recostado sob a estátua do nobre senhor, com Lennon dizendo ao meu lado que a felicidade é uma arma quente, mama, quando eu te seguro nos braços e sinto meu dedo em seu gatilho, e já estamos em Barra do Piraí. Ainda ao pé do busto, sem música medíocre nem tempero cancerígeno em pó, por trás da voz de Ringo, que está waiting here just waiting to hear from you, escuto outra voz, que vem ocupar minha atenção. Tal qual uma porta-bandeira urgente que defende as cores do G.R.E.S. República Federativa do Brasil, a dona daquela voz inesperada apareceu na esquina e buscou montar no busto do senhor, e proclamando aos ventos, como uma Liberté que se põe a guiar o povo sem o colo nu, porque na porta-bandeira, afinal, é a bandeira o que deve chamar a atenção:

...tranquilamente, diferentemente dos quarenta passageiros atrás dele.

—Compatriotas - se acaso o forem -, venho até vocês lançar uma grave questão!

Neste momento, ela faz uma pausa, pois luta contra seu próprio peso para montar nas costas da estátua. Não parece me ver aqui embaixo, talvez porque já é noite na RJ-145.

—Venho, pois, a perguntar-lhes, mas sobretudo às suas consciências: vocês sequer cogitam o sangue visto e os lamentos ouvidos, tantas terríveis notícias nestes, naqueles e naqueles outros jornais?

E nisso ela aponta pausadamente as bancas de jornal da praça e do cruzamento. Acho bonito aquele jeito de apontar. Ao contrário da moça do quadro de Delacroix, ela olha para a frente, com o queixo um pouco levantado.

—Eis que tudo apita como panelas de pressão, como últimos sons possíveis de vozes abafadas e esfarinhadas pelo moinho da ignorância. Tanto sangue, tanta vida esvaída! E ainda assim vocês as veem virar e revirar areia, dizendo que amanhã é outro dia e que pelo menos chegaram às suas casas. Pelo menos?, ora irmãos! Quanto se alimentam as suas esposas?, os seus maridos?, os seus filhos?, e vocês mesmos? Enquanto isso, nossos irmãos perdem as vidas! A tinta preta na página, a voz do locutor e a gravata do apresentador ecoam a transparência das estantes no fundo da casinha do cachorro!  É sete de setembro e o  jornal dobrado vira chapéu na cabeça do menino! A televisão esfumaça a memória com pilhas de escândalos federais! O que fica em nossas memórias é a tela fria, não o calor do sangue tornado fervente - se é que se esquentou ao tocar esse asfalto infértil! Do lado de cá da tela, tornemo-nos febris, ora irmãos!

A plateia da rapariga, que se formou no começo dos gritos como um grupo de turistas, parecia agora se perguntar por que é que eu estava jogado ali, aos pés daquela porta-bandeira, um pouco desequilibrada com um pé sobre a cabeça do senhor ministro. De repente eu já estava em casa, jogando três colheres de Nescau no leite, condenando meu intestino à terrível madrugada dos pouco tolerantes à lactose.

A hora de acordar é uma coisa terrível, neste instante gelatinoso caímos na real e o cotidiano reabre seus buracos nas calçadas. Dilatação total do tempo, o dia se abre incontrolável como um bocejo. De repente, já é sexta-feira. Quando o motorista gritou "ponto final", acreditei ter tido a exata sensação da queda. Entre um bocejo e outro, quase lembrei o que me ensinaram sobre a faixa de tempo pastoso entre sair do sonho, daquele mundo sem gravidade, de imagens não raro desconectadas e ainda menos veladas, e penetrar o mundo das escovas de dentes, quando as temos, do café da manhã, muitas vezes insosso diante do sabor daquele cruzamento cheio de gente, do sabor de estar jogado aos pés daquela estátua e, consequentemente, da garota escandalosa. E mais do que isso tudo, sair do sono rumo aos bons dias, muitas vezes respondidos com sorrisos azedos.

Estar aqui embaixo, no mundo, é ser jogado de um lado para o outro numa encenação de aventuras e desventuras, é estar num teatro de sombras chinesas. Bom dia, claro, il faut le dire. Mas mal metemos o pé para fora da cama e lá vêm os papéis de sempre, os pontos de ônibus de sempre, os tantos por cento em que o dólar se movimentou.

No final das contas, tudo depende da qualidade do pano que conseguimos colocar entre os bonecos e o mundo. Acho que pouco importa se vivemos uma tragédia hipertensa ou uma comédia mequetrefe. A questão é mesmo a qualidade do pano.